“O mapa deve estar locado sempre no “entre”. Nem objetivo nem subjetivo; nem corporal, nem espacial; nem experiencial, nem representacional. Entre uma coisa e outra, sem que haja exclusão de qualquer elemento”
Heloísa Neves
Por Diego Marques
Colaboração de Bárbara Kanashiro.
| Bordaflores, Bárbara Kanashiro, Perfografia Edição#2_Interlagos/SP |
Á deriva nas extremidades da Zona Sul de São Paulo, borramos as fronteiras entre corpo e cidade na medida em que a afetividade entre os mesmos possibilitou-nos a experimentação de práticas performativas nos interstícios da vida cotidiana no Jd. Primavera. Desta maneira, topografias emocionais, mapas afetivos, cartografias sentimentais foram traçadas, destraçadas e retraçadas - corpos borrados através da linguagem da performance, cuja as especificidades estão para além das abordagens tradicionais da geografia.
Enquanto um olhar cientificista de uma determinada paisagem pode ter como finalidade a construção de um mapa que sirva como representação técnica e objetiva da mesma, representado-a com a utilização de símbolos e escalas padronizados; em nossa estadia no Jd. Primavera também interessava-nos o oposto: uma investigação sensível do espaço urbano, de modo a concebermos uma cartografia poética por meio de ações performativas diluídas no cotidiano. Neste sentido, aproximamo-nos de Heloisa Neves, que, em seu artigo, Mapa [ou] um estudo sobre representações complexas discorre a respeito do conceito de mapa e de como este tem sido empregado em diversos campos do conhecimento.
Segundo a autora, mapear é representar alguma coisa, seja um espaço, um fenômeno ou uma organização corporal. Neves destaca, entretanto, o entendimento de mapa na perspectiva de três pensadores distintos: Gilles Deleuze, Antônio Damásio e Francisco Varela. Heloísa nos conta que, na neurociência, o conceito de mapa é utilizado por Damásio para explicar a forma que o cérebro organiza e reorganiza constantemente as informações que recebe e emite ao perceber o ambiente, no amplo sentido do termo, dando origem a imagens que representam o mesmo, através do que o neurocientista português denomina como mapas neurais.
Já em Deleuze, ainda de acordo com Heloísa, encontraremos a oposição entre as noções de mapa e decalque como possibilidades para representação. A imagem cristalizada e sem movimento temporal, como a fotografia e a pintura, seriam formas de representação inertes próximas a idéia de dequalque, enquanto o mapa, ao remeter ao movimento, ao crescimento, ao ímpeto, devido a sua estrutura caótica, aproxima-se de formas de representação móveis, ao sugerir um objeto que é criado e recriado simultaneamente.
Desta forma, através dos exemplos acima, podemos observar que, mesmo em diferentes campos do conhecimento, o conceito de mapa surge associado a noções como processualidade e interatividade, características estas também imanentes a arte, e, sobretudo, a arte da performance, que fez por meio destes mesmos elementos, algumas de suas importantes contribuições para a Arte Contemporânea. Logo, basta um ligeiro olhar para a genealogia da performance, para vermos que o mapa não consiste num novo elemento nesta linguagem artística, como nos demonstram as trajetórias dos Situcionistas, de Yoko Ono, de Hélio Oiticica e mais recentemente, do artista belga Francis Alys.
Nesta perspectiva, o mapa emergiu como um potente mediador de ações performativas durante o Perfografia Edição#2_Interlagos/SP, à medida que sua característica altamente relacional, potencializada através de instruções sugerindo modos de performá-lo, borrava os limites entre corpo e cidade, obra e espectador, arte e vida, diluindo-os no fluxo do cotidiano, conforme a experiência artística no espaço urbano produzia aquilo que Maria Beatriz de Medeiros denomina como Sinais Nomadizantes:
Sinais que produzem uma espécie de cesura, onde a espacialidade e a temporalidade anterior se tornam alteradas; uma tensão imediata e modificadora, arrebatamento, nocaute, deseclarecer momentâneo, questionamento obsceno, perturbador, reflexos perplexos, pausas, desconstruções.
Em outras palavras, poderíamos dizer que o mapa, entendido como um sinal nomadizante germinador de outros sinais nomadizantes, intentou mediar territorializações, desterritorializações e reterritorializações ao convidar os performadores a errarem entre o cotidiano e o extra cotidiano, entre o nomadizante e o normatizante, conforme desautomatizavama percepção destes frente à cotidianidade.
Deste modo, podemos entender o mapa como um objeto que incitou-nos a experimentar zonas fronteiriças, problematizando as concepções de dentro e fora, uma vez que, por meio deste, modificamos poeticamente a paisagem enquanto esta também nos modificava, revelando-nos o cidadão e a cidade como entes interdependentes, resultantes do conjunto de relações sociais que o constituem. Co-sensibilizados para a cidade, para o outro e para si mesmos, (re) descobrimos na performance a possibilidade de esboçar uma cartografia do encontro com este outro em que habitamos – a cidade, ao mesmo tempo em que encontramos a cidade que habita em nós.
Encerramos este texto, com um registro de um destes encontros realizados no Perfografia Edição#2_Interlagos/SP, que se tornou possível mediante o convite feito ao Coletivo Parabelo para integrarmos a I Mostra Beiçola organizada pela Cia Humbalada de Teatro, a qual deixamos aqui nosso agradecimento, por este não menos oporturno, encontro.