terça-feira, 12 de junho de 2012

No horizonte do improvável.


Eróticoelha, Denise Rachel, II Circuito BodeArte, Natal/RN 2012.

           


Por Denise Rachel.

            A arte tem me levado a fazer coisas improváveis, a arte, mais especificamente a performance, que almeja não pertencer à categoria nenhuma, mas integrar-se à vida, tem me levado a refletir a respeito de posicionamentos, atitudes, modos de ser e estar no mundo. Tem me levado a submergir em experiências que dialogam com o risco, com o inesperado, que desafiam minhas tentativas de estabelecer verdades e conceitos que rapidamente se desconstroem para dar lugar à processualidade, ao constante exercício de alteridade diante do outro. Tem me levado a compreender que diferente de argumentar, é preciso dialogar – argumentar pressupõe a concorrência entre ideias diferentes em busca de aprovação de uma delas como a melhor ou a mais correta; enquanto que para o diálogo é necessária a generosidade da escuta, da compreensão, de se relacionar com algo/alguém que não é melhor nem pior do que você mesmo. Este deixar-se levar pela performance, pelas relações que esta estabelece com o mundo, com a vida, é um tanto quanto conflituoso e árduo ao considerar as normas sociais que regem nossa subjetividade dentro do sistema capitalista, no qual a supervalorização do consumo e do lucro direciona e padroniza nossas vontades. Foi em meio a estas inquietações que, junto com Bárbara Kanashiro e Diego Marques, todos integrantes do Coletivo Parabelo, fui para Natal, Rio Grande do Norte, participar do II Circuito Regional de Performance BodeArte. Neste texto-relato, almejo promover o diálogo entre estas inquietações e as performances Grampo e Eróticoelha, ambas presentificadas neste contexto.

                Entregar-se à vulnerabilidade. Correr o risco. Abrir possibilidades para o inesperado. Oferecer o próprio corpo para que outros o recriem em espaço público de interação entre vida e arte. Alguns elementos que compõem a performance Grampo, realizada por Bárbara Kanashiro, em uma das ruas mais movimentadas do centro de Natal. Grampos de cabelo eram oferecidos aos transeuntes que aplicavam (ou não) os mesmos em diferentes partes do corpo da performer, numa proposta de modificação corporal, em que o ético e o estético se imbricaram na tensão entre o padrão de beleza feminino imposto mercadologicamente e as inúmeras possibilidades de transformação do mesmo, abrindo para diversas interpretações e questionamentos em torno da mesma ação. Até o momento em que o corpo da performer, a princípio vestido, começa a tornar-se aparente em toda sua potência.

                Corpo exposto, perplexidade, acusações de loucura, de imoralidade, sensações afloradas rapidamente submetidas ao freio social: oito policiais militares se aproximaram da performer, um deles cobriu parte de seu corpo com um saco de lixo preto (o corpo em sua potência é reificado). Uma multidão acompanhou a ação policial em meio a protestos como “Deixe a moça trabalhar! Este é o trabalho dela!” ou “Isto é arte contemporânea!”, Bárbara foi levada para a delegacia. Eu a acompanhei neste trajeto, no camburão eram três homens para duas mulheres, em um momento de apreensão no limiar da criminalidade. Na delegacia casos de assalto, agressão física e “a louca dos grampos”, com direito à cobertura da imprensa local, aproximou arte e vida também, quando a performance foi encarada como ato obsceno, protesto contra o tráfico de mulheres e a violência sexual, abrindo outras possibilidades de discussão ao assistir às imagens de uma mulher entrevistada com a boca repleta de grampos. O que está interdito nestas imagens?

                Um dia antes, Eróticoelha caminhava pela mesma rua oferecendo seus seios em uma bandeja contendo variados sabores de cobertura e confeitos. “Quer dar uma provadinha?”, eu anunciava. Alguns aproveitaram a oportunidade, outros estranharam, riram, se recusaram afirmando serem diabéticos, uma senhora que vendia títulos de capitalização abandonou seu posto de trabalho para anunciar e demonstrar os procedimentos para participar da performance, comentando abertamente sobre sua sexualidade e a reação dos demais a partir das relações que eram estabelecidas durante o trajeto. Eróticoelha oferece seus confeitos para os policiais de plantão, para um padre e uma freira, “Será que o padre pode, minha gente? Acho que o padre não pode não!”, a senhora comentou, entre os risos de um grupo de pessoas que acompanhava a ação.

                Em ambas as performances, questionamentos foram suscitados em torno da reificação da mulher, dos padrões de comportamento aceitos pelas normas sociais, de como reagir diante do inesperado, de como compreender e classificar essas ações. A abertura para a diferença, para o “perder o chão” e ter de buscar referências para lidar com as situações desencadeadas pelas proposições de cada performance ora levou ao diálogo e à discussão, ora levou à defesa, no sentido da manutenção da ordem e à negação do desconhecido ou daquilo que potencialmente desestabilizaria os padrões socialmente aceitos.  A partir disso, cogito algumas possibilidades que levaram a reações tão diferentes para estas performances que discutiram, entre outras leituras, a condição da mulher em nossa sociedade. No caso de Eróticoelha, a figura de uma mulher doce, palatável, um ícone da sensualidade propagada pela revista Playboy (a coelhinha), aquela que vem para servir (a empregada, a garçonete), para alimentar (a ama de leite), se encaixam no imaginário comum criado para o conceito fetichizado de mulher reproduzido cotidianamente. Enquanto em Grampo, a modificação corporal pode provocar o estranhamento diante de imagens que se distanciam ou ressignificam a aparência e o comportamento esperados de uma mulher, fato que provavelmente influenciou na ação dos policiais para conter algo que a princípio não conseguiram enquadrar em algum padrão de normalidade.

                Desse modo, a performance mais uma vez tem me levado a refletir a respeito das relações que podemos estabelecer com o outro, dos diálogos que podem ser desenvolvidos em torno da ética, da estética, da macro e da micropolítica, através de propostas que partem de questionamentos pessoais e ganham forma na interação com o outro. E, arrisco afirmar que a Arte pode ser um exercício para se pensar e inventar diferentes formas de vida em contraponto a um imaginário comum construído e reconstruído diariamente através da mídia e de ideais arraigados em nossa formação cultural.