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| Eróticoelha, Denise Rachel, II Circuito BodeArte, Natal/RN 2012. |
Por Denise Rachel.
A arte tem me levado a fazer coisas improváveis, a arte, mais
especificamente a performance, que almeja não pertencer à categoria nenhuma,
mas integrar-se à vida, tem me levado a refletir a respeito de posicionamentos,
atitudes, modos de ser e estar no mundo. Tem me levado a submergir em
experiências que dialogam com o risco, com o inesperado, que desafiam minhas
tentativas de estabelecer verdades e conceitos que rapidamente se desconstroem
para dar lugar à processualidade, ao constante exercício de alteridade diante
do outro. Tem me levado a compreender que diferente de argumentar, é preciso
dialogar – argumentar pressupõe a concorrência entre ideias diferentes em busca
de aprovação de uma delas como a melhor ou a mais correta; enquanto que para o
diálogo é necessária a generosidade da escuta, da compreensão, de se relacionar
com algo/alguém que não é melhor nem pior do que você mesmo. Este deixar-se
levar pela performance, pelas relações que esta estabelece com o mundo, com a
vida, é um tanto quanto conflituoso e árduo ao considerar as normas sociais que
regem nossa subjetividade dentro do sistema capitalista, no qual a
supervalorização do consumo e do lucro direciona e padroniza nossas vontades. Foi
em meio a estas inquietações que, junto com Bárbara Kanashiro e Diego Marques,
todos integrantes do Coletivo Parabelo, fui para Natal, Rio Grande do Norte,
participar do II Circuito Regional de Performance BodeArte. Neste texto-relato,
almejo promover o diálogo entre estas inquietações e as performances Grampo e Eróticoelha, ambas presentificadas neste contexto.
Entregar-se
à vulnerabilidade. Correr o risco. Abrir possibilidades para o inesperado.
Oferecer o próprio corpo para que outros o recriem em espaço público de
interação entre vida e arte. Alguns elementos que compõem a performance Grampo, realizada por Bárbara Kanashiro,
em uma das ruas mais movimentadas do centro de Natal. Grampos de cabelo eram
oferecidos aos transeuntes que aplicavam (ou não) os mesmos em diferentes
partes do corpo da performer, numa proposta de modificação corporal, em que o
ético e o estético se imbricaram na tensão entre o padrão de beleza feminino
imposto mercadologicamente e as inúmeras possibilidades de transformação do
mesmo, abrindo para diversas interpretações e questionamentos em torno da mesma
ação. Até o momento em que o corpo da performer, a princípio vestido, começa a
tornar-se aparente em toda sua potência.
Corpo
exposto, perplexidade, acusações de loucura, de imoralidade, sensações
afloradas rapidamente submetidas ao freio social: oito policiais militares se
aproximaram da performer, um deles cobriu parte de seu corpo com um saco de
lixo preto (o corpo em sua potência é reificado). Uma multidão acompanhou a
ação policial em meio a protestos como “Deixe a moça trabalhar! Este é o
trabalho dela!” ou “Isto é arte contemporânea!”, Bárbara foi levada para a
delegacia. Eu a acompanhei neste trajeto, no camburão eram três homens para
duas mulheres, em um momento de apreensão no limiar da criminalidade. Na
delegacia casos de assalto, agressão física e “a louca dos grampos”, com direito
à cobertura da imprensa local, aproximou arte e vida também, quando a
performance foi encarada como ato obsceno, protesto contra o tráfico de mulheres
e a violência sexual, abrindo outras possibilidades de discussão ao assistir às
imagens de uma mulher entrevistada com a boca repleta de grampos. O que está
interdito nestas imagens?
Um dia
antes, Eróticoelha caminhava pela
mesma rua oferecendo seus seios em uma bandeja contendo variados sabores de
cobertura e confeitos. “Quer dar uma provadinha?”, eu anunciava. Alguns
aproveitaram a oportunidade, outros estranharam, riram, se recusaram afirmando
serem diabéticos, uma senhora que vendia títulos de capitalização abandonou seu
posto de trabalho para anunciar e demonstrar os procedimentos para participar
da performance, comentando abertamente sobre sua sexualidade e a reação dos
demais a partir das relações que eram estabelecidas durante o trajeto. Eróticoelha oferece seus confeitos para
os policiais de plantão, para um padre e uma freira, “Será que o padre pode,
minha gente? Acho que o padre não pode não!”, a senhora comentou, entre os risos
de um grupo de pessoas que acompanhava a ação.
Em ambas
as performances, questionamentos foram suscitados em torno da reificação da mulher,
dos padrões de comportamento aceitos pelas normas sociais, de como reagir
diante do inesperado, de como compreender e classificar essas ações. A abertura
para a diferença, para o “perder o chão” e ter de buscar referências para lidar
com as situações desencadeadas pelas proposições de cada performance ora levou
ao diálogo e à discussão, ora levou à defesa, no sentido da manutenção da ordem
e à negação do desconhecido ou daquilo que potencialmente desestabilizaria os
padrões socialmente aceitos. A partir
disso, cogito algumas possibilidades que levaram a reações tão diferentes para
estas performances que discutiram, entre outras leituras, a condição da mulher
em nossa sociedade. No caso de Eróticoelha,
a figura de uma mulher doce, palatável, um ícone da sensualidade propagada pela
revista Playboy (a coelhinha), aquela que vem para servir (a empregada, a
garçonete), para alimentar (a ama de leite), se encaixam no imaginário comum
criado para o conceito fetichizado de mulher reproduzido cotidianamente.
Enquanto em Grampo, a modificação
corporal pode provocar o estranhamento diante de imagens que se distanciam ou
ressignificam a aparência e o comportamento esperados de uma mulher, fato que
provavelmente influenciou na ação dos policiais para conter algo que a
princípio não conseguiram enquadrar em algum padrão de normalidade.
Desse
modo, a performance mais uma vez tem me levado a refletir a respeito das
relações que podemos estabelecer com o outro, dos diálogos que podem ser
desenvolvidos em torno da ética, da estética, da macro e da micropolítica,
através de propostas que partem de questionamentos pessoais e ganham forma na
interação com o outro. E, arrisco afirmar que a Arte pode ser um
exercício para se pensar e inventar diferentes formas de vida em contraponto a
um imaginário comum construído e reconstruído diariamente através da mídia e de
ideais arraigados em nossa formação cultural.
