terça-feira, 3 de abril de 2012

Performance como Hódos Metá ou de como eu/ela me tornei/se tornou uma Caixa Postal.



A metodologia, quando se impõe como palavra de ordem, define-se por regras previamente estabelecidas. Daí o sentido tradicional da palavra: metá-hódos. Com essa direção, a pesquisa é definida como um caminho (hódos) predeterminado pelas metas dadas de partida. Por sua vez, a cartografia propõe uma reversão metodológica: transformar o metá-hódos em hódos-metá. 


(Eduardo Passos, Virgínia Kastrup e Liliana da Escóssia)

Bárbara Kanashiro, Univer Cité, Perfografia Edição#5 _Cidade Universitária/SP


Por Denise Rachel e Diego Marques.

Em um constante processo de busca por procedimentos de criação que promovam um saber/fazer arte compartilhados, o Coletivo Parabelo desenvolve no projeto Perfografia uma proposta de criação que caminha entre a figura do performer e a do cartógrafo. Este estar entre a linguagem da performance e a cartografia surge na relação do trabalho do coletivo com o espaço urbano, nas implicações geradas pelo deslocamento do saber/fazer artístico para um tempo-espaço que à priori não é destinado a abrigar processos de criação: a rua. Entretanto, um dos pressupostos da arte da performance é seu caráter subversivo, ligado aos movimentos de contracultura, anti-hegemônicos, ao propor que um indivíduo ou um coletivo de indivíduos entrem em ação inseridos em um processo de ritualização do tempo-espaço presente e contrariem, deste modo, as convenções preestabelecidas a respeito de “quem, como, onde, quando, para que” se faz arte na contemporaneidade.

Neste Perfografia#5 Cidade Universitária_São Paulo/SP, a convite do Processos Públicos um evento/exposição com curadoria dos alunos do curso de Arte: História, Crítica e Curadoria da PUC-SP organizado no Paço das Artes e no Museu da Cultura da PUC-SP, trabalhamos na fronteira entre um espaço reservado para a produção de conhecimento acadêmico e a favela São Remo, caminhamos entre linhas de força contrastantes que a cada passo tornavam mais explícito o conflito entre o dentro e o fora da universidade. No primeiro encontro desta edição do Perfografia, com espelhos em punho percorremos os contornos do limite entre São Remo e USP, com um olhar que captava simultaneamente o movimento de nossos corpos em relação ao que estava acontecendo em um raio de quase 360º, sob diferentes perspectivas. A amplitude desta percepção extra cotidiana do ato de caminhar, nos fez reconhecer determinado local e permitiu com que experimentássemos diferentes modos de sermos afetados pelo mesmo, o que desencadeou desconfortos em um nível subjetivo – a sensação de enjôo por não ter o hábito de enxergar daquela forma, o ser questionado, ora de modo brincalhão ora incisivamente, a respeito do objetivo de caminhar com aqueles espelhos – os limites entre “eu e o outro” estavam em constante negociação e fizeram emergir uma tensão latente, quando alguns moradores interpretaram nossa ação como um procedimento de medição de terreno, uma cartografia com objetivos claros: o processo de reurbanização que a universidade planeja implantar na favela São Remo.

A experiência extra cotidiana na rua foi encarada como uma ação investigativa e disciplinadora, no sentido de intervir na realidade da favela a partir de uma perspectiva arquitetônica e urbanística interessada em organizar o espaço urbano em prol da circulação e produção de mercadorias, do bem estar, segurança e lazer daqueles que possuem condições para financiar a especulação imobiliária e usufruir da infraestrutura e saneamento considerados ideais para habitar uma metrópole predeterminada pelo capital. Diante deste fato, fizemos um movimento de retomada dos procedimentos de pesquisa e criação do coletivo, para nos situarmos em relação ao que podia a linguagem da performance neste contexto. Pois, através das pistas cartografadas pela performance, pela experimentação no tempo-espaço real, nos deparamos com uma linha de força que mobilizou nossa atenção e gerou a necessidade de inventarmos um vocabulário para expressar e agir nesta fronteira entre eu e o outro, arte e vida, universidade e cidade. Nesta retomada, cada performer integrante do Coletivo Parabelo elencou as pistas encontradas durante seus percursos experimentais, ou se preferirmos, errâncias urbanas, ao longo das edições do perfografia, para fazer emergir outras vidas das formas de pesquisa e criação em relação às formas de vida com as quais nos embrenhamos por meio da experiência estética no espaço urbano.

Esta invenção de si em relação ao outro e vice e versa, impulsiona o ethos, a atitude investigativa que gera a necessidade de dar língua ao que nos afeta em conexão com o outro, em uma experimentação que não separa mente e corpo, pensamento e ação, mas que almeja ser in-corporada, como dizia Hélio Oiticica, presentificada, performada na ritualização do instante presente: a força da ação performática que intensifica os trânsitos entre o corpo performático e o corpo da cidade no cotidiano. Assim, experimentamos concomitantemente tanto formas de vida como a vida das formas ao investigarmos o que pode a linguagem da performance no espaço urbano. Desse modo, a ação performática emerge no espaço urbano como um experimento, uma tentativa de desautomatizar o corpo em relação aos processos hegemônicos que condicionam as relações com o outro cidade. Esta desautomatização é ativada no decorrer do percurso experimentado nas ruas, das errâncias urbanas em que a experiência, o fluxo entre o corpo e o ambiente, faz emergir leitmotivs para poetizar o ser/estar na cidade, para ritualizar o instante presente e promover o diálogo entre arte e vida.

Foi ao percorrer este caminho com espelho e afetos pelas ruas da São Remo/Cidade Universitária que eu/ela comecei/começou a vislumbrar o que poderia ser o fator desautomatizador da minha/dela percepção diante daquela realidade, o que eu/ela sentia/sentiu urgir entre os muros que separam a São Remo da Universidade de São Paulo. O não-diálogo entre cidade e universidade transformado em campo minado no qual as diferenças, o acadêmico, o popular e as experiências de vida vivem a eminência do conflito, me /lhe remeteu a uma prática artística que entre outras características, intenta aproximar pessoas que estão geográfica, cultural e politicamente distantes, separadas por meio de muros geográficos, culturais, políticos: a arte postal, arte correio ou mail art, difundida no Brasil nos anos 70 e 80, diante da profusão de meios de comunicação que contraditoriamente impossibilitavam e ainda impossibilitam o equilíbrio entre vozes, opiniões que possuem liberdade para serem expressas e ouvidas de maneira dinamicamente equilibrada. Segundo Paulo Bruscky  “A ARTE CORREIO é como história da história não escrita”, esta afirmação trouxe à tona a possibilidade de confrontar a história escrita pelos moradores da São Remo com a história que a instituição pretende sobrescrever em relação ao seu entorno. Através destas linhas de força/leitmotivs emergiu a persona Caixa Postal, na qual caminhei pela Avenida São Remo com uma indumentária que sugeria um correio ambulante, como forma de por este diálogo entre universidade e São Remo em fluxo, fazer fluir à história ou histórias que vivem a tensão de serem soterradas por um projeto arquitetônico e urbanístico que não tem interesse pelas formas de vida que os moradores teceram com/naquela região. Neste caso, a ação de escrever e enviar cartas endereçadas à reitoria da universidade pode fazer pouco para que as formas de vida sejam preservadas, mas faz espalhar aquilo que pode vir a ser o que Walter Benjamin chamou de cacos da história, por meio da possibilidade dos vestígios das ações performáticas servirem como registro de uma situação que está na eminência de ser resolvida a partir de um ponto de vista que vê aquelas vidas do alto, e de lá as representa, por meio de mapas e escalas padronizados, por um cartógrafo-deus, legitimado pela academia e por convenções sociais estabelecidas pelo mercado e que pouco lembra o cartógrafo sentimental, sugerido por Suely Rolnik, este que estamos procurando experimentar com a performance -  no esforço de não percorrer caminhos e objetivos preestabelecidos, de não fazer ecoar palavras de ordem, de não separar o sujeito da realidade, de investir na possibilidade do hódus-metá da performance,  de  encontrar as  possíveis boas entradas, desde que as saídas sejam múltiplas, as frestas, o mergulho na geografia dos afetos, o habitar o ilocalizável – no qual  a invenção e o encontro possam irromper  ainda que em meio a um conflito eminente.