A metodologia, quando se impõe como palavra de ordem,
define-se por regras previamente estabelecidas. Daí o sentido tradicional da
palavra: metá-hódos. Com essa direção, a pesquisa é definida
como um caminho (hódos)
predeterminado pelas metas dadas de partida. Por sua vez, a cartografia propõe
uma reversão metodológica: transformar o metá-hódos em hódos-metá.
(Eduardo
Passos, Virgínia Kastrup e Liliana da Escóssia)
| Bárbara Kanashiro, Univer Cité, Perfografia Edição#5 _Cidade Universitária/SP |
Por Denise Rachel e Diego Marques.
Em um constante processo
de busca por procedimentos de criação que promovam um saber/fazer arte
compartilhados, o Coletivo Parabelo desenvolve no projeto Perfografia uma
proposta de criação que caminha entre a figura do performer e a do cartógrafo.
Este estar entre a linguagem da performance e a cartografia surge na relação do
trabalho do coletivo com o espaço urbano, nas implicações geradas pelo
deslocamento do saber/fazer artístico para um tempo-espaço que à priori não é
destinado a abrigar processos de criação: a rua. Entretanto, um dos
pressupostos da arte da performance é seu caráter subversivo, ligado aos
movimentos de contracultura, anti-hegemônicos, ao propor que um indivíduo ou um
coletivo de indivíduos entrem em ação inseridos em um processo de ritualização
do tempo-espaço presente e contrariem, deste modo, as convenções
preestabelecidas a respeito de “quem, como, onde, quando, para que” se faz arte
na contemporaneidade.
Neste Perfografia#5
Cidade Universitária_São Paulo/SP, a convite do Processos Públicos um
evento/exposição com curadoria dos alunos do curso de Arte: História, Crítica e
Curadoria da PUC-SP organizado no Paço das Artes e no Museu da Cultura da PUC-SP,
trabalhamos na fronteira entre um espaço reservado para a produção de
conhecimento acadêmico e a favela São Remo, caminhamos entre linhas de força
contrastantes que a cada passo tornavam mais explícito o conflito entre o
dentro e o fora da universidade. No primeiro encontro desta edição do
Perfografia, com espelhos em punho percorremos os contornos do limite entre São
Remo e USP, com um olhar que captava simultaneamente o movimento de nossos corpos
em relação ao que estava acontecendo em um raio de quase 360º, sob diferentes
perspectivas. A amplitude desta percepção extra cotidiana do ato de caminhar,
nos fez reconhecer determinado local e permitiu com que experimentássemos diferentes
modos de sermos afetados pelo mesmo, o que desencadeou desconfortos em um nível
subjetivo – a sensação de enjôo por não ter o hábito de enxergar daquela forma,
o ser questionado, ora de modo brincalhão ora incisivamente, a respeito do
objetivo de caminhar com aqueles espelhos – os limites entre “eu e o outro”
estavam em constante negociação e fizeram emergir uma tensão latente, quando
alguns moradores interpretaram nossa ação como um procedimento de medição de
terreno, uma cartografia com objetivos claros: o processo de reurbanização que
a universidade planeja implantar na favela São Remo.
A experiência extra
cotidiana na rua foi encarada como uma ação investigativa e disciplinadora, no
sentido de intervir na realidade da favela a partir de uma perspectiva
arquitetônica e urbanística interessada em organizar o espaço urbano em prol da
circulação e produção de mercadorias, do bem estar, segurança e lazer daqueles
que possuem condições para financiar a especulação imobiliária e usufruir da
infraestrutura e saneamento considerados ideais para habitar uma metrópole predeterminada
pelo capital. Diante deste fato, fizemos um movimento de retomada dos
procedimentos de pesquisa e criação do coletivo, para nos situarmos em relação
ao que podia a linguagem da performance neste contexto. Pois, através das
pistas cartografadas pela performance, pela experimentação no tempo-espaço
real, nos deparamos com uma linha de força que mobilizou nossa atenção e gerou
a necessidade de inventarmos um vocabulário para expressar e agir nesta
fronteira entre eu e o outro, arte e vida, universidade e cidade. Nesta
retomada, cada performer integrante do Coletivo Parabelo elencou as pistas
encontradas durante seus percursos experimentais, ou se preferirmos, errâncias
urbanas, ao longo das edições do perfografia, para fazer emergir outras vidas das formas de pesquisa e criação em relação às formas de vida com as quais nos
embrenhamos por meio da experiência estética no espaço urbano.
Esta invenção de si em
relação ao outro e vice e versa, impulsiona o ethos, a atitude investigativa que gera a necessidade de dar língua
ao que nos afeta em conexão com o outro, em uma experimentação que não separa mente
e corpo, pensamento e ação, mas que almeja ser in-corporada, como dizia Hélio
Oiticica, presentificada, performada na ritualização do instante presente: a
força da ação performática que intensifica os trânsitos entre o corpo performático
e o corpo da cidade no cotidiano. Assim, experimentamos concomitantemente tanto
formas de vida como a vida das formas ao investigarmos o que pode a linguagem
da performance no espaço urbano. Desse modo, a ação performática emerge no
espaço urbano como um experimento, uma tentativa de desautomatizar o corpo em
relação aos processos hegemônicos que condicionam as relações com o outro
cidade. Esta desautomatização é ativada no decorrer do percurso experimentado
nas ruas, das errâncias urbanas em que a experiência, o fluxo entre o corpo e o
ambiente, faz emergir leitmotivs para
poetizar o ser/estar na cidade, para ritualizar o instante presente e
promover o diálogo entre arte e vida.
Foi ao percorrer este
caminho com espelho e afetos pelas ruas da São Remo/Cidade Universitária que
eu/ela comecei/começou a vislumbrar o que poderia ser o fator desautomatizador
da minha/dela percepção diante daquela realidade, o que eu/ela sentia/sentiu urgir
entre os muros que separam a São Remo da Universidade de São Paulo. O não-diálogo
entre cidade e universidade transformado em campo minado no qual as diferenças,
o acadêmico, o popular e as experiências de vida vivem a eminência do conflito,
me /lhe remeteu a uma prática artística que entre outras características, intenta
aproximar pessoas que estão geográfica, cultural e politicamente distantes, separadas por meio de muros geográficos, culturais, políticos: a arte postal, arte correio ou mail art, difundida no Brasil nos anos
70 e 80, diante da profusão de meios de comunicação que contraditoriamente
impossibilitavam e ainda impossibilitam o equilíbrio entre vozes, opiniões que
possuem liberdade para serem expressas e ouvidas de maneira dinamicamente
equilibrada. Segundo Paulo Bruscky “A
ARTE CORREIO é como história da história não escrita”, esta afirmação trouxe à
tona a possibilidade de confrontar a história escrita pelos moradores da São
Remo com a história que a instituição pretende sobrescrever em relação ao seu
entorno. Através destas linhas de força/leitmotivs emergiu a persona Caixa
Postal, na qual caminhei pela Avenida São Remo com uma indumentária que sugeria
um correio ambulante, como forma de por este diálogo entre universidade e São
Remo em fluxo, fazer fluir à história ou histórias que vivem a tensão de serem
soterradas por um projeto arquitetônico e urbanístico que não tem interesse
pelas formas de vida que os moradores teceram com/naquela região. Neste caso, a
ação de escrever e enviar cartas endereçadas à reitoria da universidade pode
fazer pouco para que as formas de vida sejam preservadas, mas faz espalhar
aquilo que pode vir a ser o que Walter Benjamin chamou de cacos da história,
por meio da possibilidade dos vestígios das ações performáticas servirem
como registro de uma situação que está na eminência de ser resolvida
a partir de um ponto de vista que vê aquelas vidas do alto, e de lá as representa, por meio de mapas e escalas padronizados, por um cartógrafo-deus,
legitimado pela academia e por convenções sociais estabelecidas pelo mercado e
que pouco lembra o cartógrafo sentimental, sugerido por Suely Rolnik, este que estamos procurando experimentar com a performance - no esforço de não percorrer caminhos e
objetivos preestabelecidos, de não fazer ecoar palavras de ordem, de não separar
o sujeito da realidade, de investir na possibilidade do hódus-metá da performance, de encontrar
as possíveis boas entradas, desde que as saídas sejam múltiplas, as frestas, o mergulho na geografia dos afetos, o habitar o ilocalizável – no qual
a invenção e o encontro possam irromper ainda que em meio a um conflito eminente.