sábado, 12 de julho de 2014

Rapsódia no morro

                                   Carrega(dor), Perfografia#12_Jaçanã/SP



Por Bárbara Kanashiro

A dor é feito pedra. Às vezes lisa às vezes estriada. Às vezes pequena às vezes imensa. Às vezes ela tem cor de terra, às vezes ela traz consigo um pedaço da vegetação ou do asfalto. Mas uma coisa que eu aprendi caminhando pelas vielas do Jaçanã é que a dor é difícil de carregar. O seu peso é do tamanho da sua história, e, às vezes, essa história é inenarrável. Como a da mulher que era mulambo e ressuscitou; do menino que sentia, mas não sabia dizer qual era a sua dor; do homem que levou um tiro nas costas; do senhor que não andava porque não aguentava subir ladeira. A cada história eu buscava uma pedra para carregar, e escolhia aquela que, de alguma forma, pedia para ser escolhida. Assim, pedra por pedra, fui errando pelas ruas da favela na região do Jaçanã.

Foi através das errâncias nesse bairro do extremo norte da cidade de São Paulo que habitamos territórios existenciais. No entendimento de Deleuze e Guattari, haveria território quando componentes de meios param de ser direcionais para se tornarem dimensionais, quando param de ser funcionais para se tornarem expressivos. Em outras palavras, há território a partir do momento em que há expressividade de ritmos como qualidades próprias que garantem a formação de um certo domínio. Entretanto, esse domínio não se constituiria como algo estanque, mas sim em constante processo de construção nas relações cotidianas entre habitantes e território habitado. Neste movimento expresso em diferentes ritmos é que emergiriam, segundo os filósofos franceses, modos e estilos de vida que caracterizam determinado tempo-espaço. Dessa forma, poderíamos pensar que, na ação de errar, de cartografar o espaço urbano através da performance, não estaríamos interessados em priorizar a identificação das funções e direções das condutas nos territórios existenciais, mas habitá-los, acompanhar e aprender com os processos e as qualidades que emergem na fricção entre os corpos. Não se trata de uma pesquisa sobre algo, mas uma pesquisa com alguém ou algo. Como afirmam os teóricos Eduardo Passos e Johnny Alvarez: “Cartografar é sempre compor com o território existencial, engajando-se nele”.

Se aceitarmos essa afirmação e entendermos que o processo de composição requer um cultivo ou um processo construtivo, poderíamos afirmar também que nesta relação está implicada uma postura de aprendizado, que suscita uma dedicação aberta e atenta ao aprendiz-cartógrafo. Este cultivaria uma disponibilidade à experiência, uma receptividade ao campo. Todavia, não adotamos o viés cientificista associado a um sujeito que intervêm em determinado campo, pois desejamos exercer composições urbanas, ideia que faz referência ao entendimento que Maria Beatriz de Medeiros propõe junto ao Corpos Informáticos (coletivo de performance ou fuleragem, modo como nomeiam suas ações, de Brasília). A experiência artística no espaço urbano de que chamam a atenção se distingue da arte como tentativa de ordenar uma visão já dada do mundo – sinal normatizante. As Cus (Composições Urbanas) buscariam tornar perceptível uma dimensão poética, os sinais nomadizantes. Estes seriam, segundo os integrantes do Corpos Informáticos, “sinais que produzem uma espécie de cesura, onde a espacialidade e a temporalidade anterior se tornam alteradas”. 

Ao caminhar, ao perder-se pelo espaço urbano, o Coletivo Parabelo estaria desestabilizando os sinais normatizantes do cotidiano, convocando os caminhantes a tornar os espaços ordinários em extraordinários, a evidenciar os sinais nomadizantes e compor com o outro urbano, habitar um território existencial pela performance. Essa habitação, todavia, seria realizada com uma receptividade afetiva e uma abertura aos acontecimentos do acaso, segundo Alvarez e Passos, pois somente desta forma poderíamos atentar para o nômade, o dito e o inaudito. Isto nos parece fundamental, pois há um sem-número de coisas, de relações, de sentimentos, de sensações imanentes à experiência que muitas vezes o verbo não dá conta.
Por isto, desejamos ainda fazer tal como o rapsodo antigo, que faz itinerâncias pelas cidades em busca do encontro com o outro, cantando versos, costurando narrativas orais dispersas. A palavra rhapsoidós é oriunda de rháptein, coser e oidé, canto. Sua etimologia pode indicar que se tratava de um “costureiro de cantos”, o que tem relação intrínseca com a formação da cultura na Hélade. Uma sociedade que se baseava na tradição oral tinha em seus aedos e rapsodos uma forma de vitalizar a própria história. Não à toa, utilizavam recursos mnemônicos, de apelo à memória, como a combinação de sílabas longas e breves, os pés do poema, nomeados dessa forma por conta da marcação ser feita com os pés, que pisavam o chão cadenciando o ritmo com que os versos eram enunciados. 
Essa característica da prosódia grega chama a atenção para o que Paola Berenstein Jacques denomina como Errantes Urbanos. Estes seriam aqueles que percebem a cidade no e pelo corpo através das errâncias, da experiência de perder-se em busca de uma prática do espaço urbano. Essa experiência é feita ao caminhar a pé. Embora não tenha um rumo, um trajeto definido, poderíamos dizer que o tempo do errante é o tempo do próprio passo. Dessa forma, poderíamos dizer que rapsodos e errantes se aproximam ao marcar o ritmo de seu canto, de sua caminhada pelo próprio pé, pelo próprio passo. Entretanto, diferente do rapsodo, que costura narrativas heróicas, épicas da tradição oral, o errante inscreve e deixa inscrever em seu corpo histórias do cotidiano, narrativas esquecidas pela História. De forma que em nenhum manual, em nenhuma enciclopédia constará que certa vez eu caminhei pelas ruas do Jaçanã em busca de histórias de dor, histórias que doíam feito pedra na garganta. Como a da mulher que era mulambo e ressuscitou; do menino que sentia, mas não sabia dizer qual era a sua dor; do homem que levou um tiro nas costas; do senhor que não andava porque não aguentava subir ladeira.