Inutensílio Comum #1, Praça Júlio de Mesquita/SP
Por Denise Rachel
A Educação pela Pedra
Uma educação pela pedra: por lições;
Para aprender da pedra, frequentá-la;
Captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
Ao que flui e a fluir, a ser maleada;
A de poética, sua carnadura concreta;
A de economia, seu adensar-se compacta:
Lições da pedra (de fora para dentro,
Cartilha muda), para quem soletrá-la.
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
E se lecionasse, não ensinaria nada;
Lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
Uma pedra de nascença, entranha a alma.
(João Cabral de Melo Neto)
Metal escuro,
de uma pedra bruta, tosco tronco de sentar ou superfície natural adaptada ao
descanso das nádegas. Daí brota a representação de um homem sentado, curvado
sobre si mesmo, mas num curvar-se quase sobre-humano que fazia com que toda sua
musculatura vibrasse aparente sob a pele fria do metal. NÃO TOQUE NA OBRA. Uma
torção que trazia o cotovelo recostado ao joelho do lado oposto e o punho
fechado apoiando o queixo. Um fisiculturista do pensamento. No entanto, o
mover-se do pensador parecia um esforço de voltar-se para dentro. O PENSADOR.
Obra consagrada de Auguste Rodin, escultor francês do período de transição
entre os séculos XIX e XX, com resquícios barrocos, traz através da forma (aesthesis) um posicionamento a respeito
do ato de pensar que pode ser lido, por exemplo, como um esforço solitário
descomunal. Um esforço para gênios. Um esforço para escolhidos. Um esforço para
fisiculturistas do pensamento.
Embarcara
nessa viagem por conta de uma xérox recebida em uma reunião pedagógica, que
trazia como ilustração de um texto sobre educação a imagem desta obra.
Desembarcara repentinamente, quando soou entre as pessoas aglutinadas no vagão
do metrô a seguinte frase: SÃO PAULO É DE AÇÚCAR... Proferida por uma
sergipana, soube depois, afirmação que foi recebida com argumentos contrários
que poderiam ser resumidos no provérbio da sabedoria popular: RAPADURA É DOCE, MAS
NÃO É MOLE NÃO. Enquanto recordava uma das primeiras exposições que tive a
oportunidade de ir, se não me engano, em 1995, com as obras de Rodin,
debruçando-me sobre mim mesma, a cidade acontecia. O metrô queimando trilhos,
as pessoas circulando como se estivessem dentro de um imenso formigueiro que se
afunilava cada vez mais, na iminência de serem esmagadas ou, se preferir,
mastigadas e cuspidas. São Paulo atrativo de formigas. Mas onde estaria o
açúcar? No sangue derramado em nome do progresso? A rapadura nordestina nos
traz ensinamentos – o esforço. Tanto esforço pra quê? Nadar e morrer antes de
chegar à praia.
Após subir as
escadas rolantes do vale das águas turvas, encontro meus companheiros de
jornada, Coletivo Parabelo e retomamos nossas errâncias pelas ruas do centro da
cidade, cada qual carregando uma rede de balanço (utensílio indígena para
descanso do corpo, hoje utensílio doméstico decorativo, design indígena que sobreviveu ao advento da metrópole). Largo do
Paissandú. Objetos que brotam em árvores. Pássaro morto ao pé da escadaria da
igreja. Brasileiros e estrangeiros. Fachadas, galerias, ambulantes,
homens-placa. Produtos daqui. Produtos de lá. NÃO PARE NO CORREDOR. Estas
inscrições presentes nas placas do subsolo da Galeria do Rock eram um prenúncio
do que ocorreria depois – o centro, o comércio, as ruas são locais de
circulação, a permanência por períodos prolongados de modo a provocar pequenas
ou grandes interrupções nas vias de passagem, se caracteriza como um estorvo.
Um desvio no planejamento urbano. E, apesar das placas de sinalização e da
fiscalização isso poderia acontecer e acontece a qualquer momento por inúmeros
motivos, entre homens e máquinas. Quando as máquinas param ou: quando os
utensílios se tornam inutensílios.
Escolhemos a
Praça Júlio de Mesquita para armarmos nossas redes. Uma sequência de postes
estilo art nouveau, ao fundo um
chafariz desativado cercado por paredes de acrílico transparente, pequenos canteiros
com árvores quase invisíveis e a relva que mal cobria o solo. A praça é
recortada por duas vias movimentadas, cercada por edifícios. Do lado oposto ao
canteiro que escolhemos para armar nossas redes estava uma viatura policial e
não demorou muito para que os guardas nos abordassem.
NÃO É
PERMITIDO ARMAR REDES NESTA PRAÇA. Por que?, indagamos. Como vocês podem ver
esta praça não tem sequer bancos, é um local de circulação. Ninguém fica parado
aqui... (Enquanto o guarda proferia essas palavras, um morador em situação de
rua definhava sentado sob uma das árvores invisíveis da mesma praça, sem que
seu estado despertasse alguma preocupação por parte das autoridades que,
segundo o próprio policial, passavam 12 horas por dia naquele local de
circulação). VOCÊS ESTÃO DANIFICANDO O PATRIMÔNIO PÚBLICO E O MEIO AMBIENTE.
Mas são apenas redes de balanço, quais danos elas poderiam causar? NINGUÉM
NUNCA FEZ ISSO ANTES, É PRECISO SOLICITAR AUTORIZAÇÃO DA PREFEITURA. O guarda
não queria confusão, não queria nada que colocasse em risco seu emprego. Então
pediu que falássemos com seus superiores por telefone. Na linha, um setor que
passava para outro e outro e outro até informarem que havia uma lei que nos
amparava e garantia manifestações artísticas no espaço público. A despeito
dessa lei, havia precedentes que permitiam que a autoridade policial
interrompesse aquela ação, como se fazia no período da ditadura militar, por
exemplo, quando não era permitido a reunião de pessoas no espaço público ou, em
período anterior, quando o jogo da capoeira praticado na rua era considerado
crime de vadiagem.
Armar redes de
balanço e recostar-se nelas poderia ser vadiagem, principalmente em um dia
denominado útil, ainda em horário comercial. Se a manutenção da ordem está
associada ao trabalho e este consiste em produzir e proporcionar a circulação
de mercadorias para consumo, nesse sentido era possível identificar uma
desordem em potencial. Vadiagem. Utilidade/inutilidade. Como essas pessoas
podem dar-se ao luxo de armar redes enquanto estamos aqui trabalhando?
Uma questão
pertinente. Contudo, surge também uma indagação sugerida por esta ação de armar
as redes (um esticando a corda, outra dando o nó, uma servindo de apoio para
alcançar o patamar mais alto da árvore, outro conversando com o guarda, uma
telefonando para a subprefeitura): não seria possível outro modo de ser na
metrópole? Tal questão poderia juntar-se a tantas outras relacionadas, por
exemplo, ao trabalho visto como uma atividade associada ao sacrifício e por
isso nobre, enquanto as atividades prazerosas são inúteis, inutensílios.
Vadiagem. Estigma atribuído tanto aos negros quanto aos indígenas por
resistirem ao modo de vida imposto pelo europeu nessas mesmas terras, hoje
pavimentadas. Armar redes em praça dita pública tornou-se, então, terrorismo
poético.
Ocupamos
aquela pequena porção de terra por algumas horas, o suficiente para atrairmos
não só policiais, mas transeuntes, ambulantes, moradores da região, a ponto de
acontecer uma aproximação para além dos olhares fortuitos. As redes despertaram
sentidos, abertas entre árvores compuseram cores, formas, sentidos e convidaram
à instauração de mitos vadios, tangenciando a marginalidade. Não havia
pretensão grandiloquente, havia uma ambiência que remetia a um cotidiano ancestral
que, pela ação do tempo tornou-se extracotidiano em uma metrópole – sentar,
conversar à sombra das árvores, trocar experiências, pensar. Conversar: da
mitologia dos orixás à discussão em torno dos usos do espaço público. Um
pensamento côncavo e aconchegante, no vai e vem. Balanço que sempre traz
lugares e impressões diferentes. Sim, há músculos, mas não enrijecidos como na
tensão criada pela escultura de Rodin. Há músculos impulsionando movimentações
internas e externas intrínsecas, vibráteis. Corpos que não nasceram para pedra
serem.
Ao sentarmos
na rede o acolhimento envolveu os corpos pensantes que iam e vinham de encontro
aos outros. Não eram corpos solitários, nem embrutecidos no gélido metal. Não
estavam à espera de uma epifania. Havia e ainda há uma busca pela maleabilidade
inerente ao tecido que nos envolve ao mesmo tempo em que está aberto, poroso, guardando
histórias daqueles que o manusearam. Havia e ainda há um movimento de ir e vir,
trazer e entregar algo que está/estava e ao mesmo tempo não está/estava ali. Um
ir e vir de potencialidades que a qualquer momento podem ser acessadas mas que,
para tanto, é preciso estar atento e disponível às transformações que daí
advém. Na busca por uma atitude que não se encerra em si mesma. Emerge um
Inutensílio Comum carregado de doçuras e agruras. Quantos
deixaram de ou jamais se recostaram à rede, para travarem uma luta interminável
pela sobrevivência? Quantos emudeceram por conta de tantas agruras? Quantos
sequer lembram da existência das redes de balanço? Contudo ainda é possível
experimentar. Os encontros e desencontros da arte da vadiagem, do vai e vem, da
errância – alguns pela necessidade/desejo, outros por viverem à margem.
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