terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Arqueologia de si: a anatomia do anjo da história.


Por Diego Marques
 “A gente escreve o que ouve, nunca o que houve”
Oswald de Andrade

Enquanto o amontado de escombros cresce até o céu. Performance. Coletivo Parabelo + alunos da graduação em Comunicação das Artes do Corpo da PUC/SP. Dezembro. 2015. 
Escuto nas vozes que ouço ecos das vozes que emudeceram. Vozes do silêncio. Um silêncio que rasga a pele, que corta o peito. Um silêncio que é apelo daqueles que foram desfeitos no que eram sem jamais chegar a ser o que quiseram. Apelo silencioso que perfura o esterno até que se sinta uma frágil força messiânica vibrar nos ossos. Não se pode rejeitar um apelo, não impunemente. Por isso, sou um rosto dirigido ao passado. Encaro-o fixamente, com os olhos escancarados, a boca dilatada e as asas bem abertas. Confundo-me com o Ângelus Novus, o quadro de Klee. Tal qual o Anjo da História, gostaria de deter-me para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Contudo, uma tempestade sopra do paraíso, impelindo-me irresistivelmente ao futuro. Futuro ao qual viro as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Encravo as unhas nas costelas. Cavo, cavo. Escavo a carne. O sangue goteja como orvalho, escorre pelas pontas dos dedos. Cavo, escavo, cavo. As unhas desmancham, roem as faces dos ossos. Escavo, cavo, cavo, cavo. Ouço ecos das vozes que emudeceram. É D.Ana, minha avó paterna. Ela me fala da fome que decepou as mãos de sua mãe. Mãos alvas, lânguidas e enrugadas que seguram um pote de torresmo para o alto. Sol a pino, céu azul ardido e chão de terra batida. Uma mãe sem rosto. Esta é a única lembrança que minha avó traz de sua mãe. Recordação de infância. Eu sou bisneto da seca de 1915. Eu sou neto da fome imemorial. Não caibo mais nestes ossos, não caibo mais nestas veias. Gostaria de deter-me para acordar os mortos e juntar os fragmentos, mas, uma tempestade sopra do paraíso, impelindo-me irresistivelmente ao futuro. Futuro ao qual viro as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Ouço ecos das vozes que emudeceram. Abro a broca em um grito mudo. Todas as bocas que se abriram antes da minha, me encontram neste momento. Um silêncio que rasga a pele, que corta o peito. Encravo as unhas nas costelas. Escavo, cavo, cavo, cavo. Tateio vísceras, cacos, excrementos, destroços.  Como escovar a história a contrapelo na pele?

[Texto escrito a partir da performance Enquanto o amontoado de escombros cresce até o céu, realizada no TUCA Arena em dezembro de 2015, como parte da monografia Errantes, Erráticos e Errabundos: por uma monografia trapeira, orientada pela Profª Ms. Dalva Aparecida Garcia]