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Atravessar com a performance, Coletivo Parabelo, Barra Funda SP/2015 |
Por Valéria Ribeiro
Perfomeira Visitante das Residências Nômades
UNESP/Barra Funda e CIEJA/Ermelino Matarazzo
A
visita dadaísta foi uma errância urbana que consistia em visitar os lugares
banais da cidade ou os lugares que não tinham razão para existir, em
contraposição à fetichização dos locais geralmente ligados à arte. De acordo
com a arquiteta Paola Berenstein Jacques, no movimento modernista brasileiro várias
visitas e excursões foram feitas por artistas brasileiros e estrangeiros às
favelas cariocas.[1] Essas
práticas de visitar algum lugar banal instabilizam a relação museológica dos
espaços urbanos, deslocam a passividade do olhar e abrem caminhos para uma nova
forma de olhar, de compor e se por com a cidade.
Se,
no entanto, nos remetermos a uma noção um pouco mais ampliada da ideia de visita,
poderemos encontrar uma série de relações possíveis nessa prática de ir em
direção ao outro urbano. No caso dos dadaístas, tratava-se de visitar um lugar
específico, crítica aos roteiros turísticos de visitas. Porém, em nossas
práticas cotidianas incluímos também algumas formas de visitação. Essas, que
poderiam ser chamadas de visitas sociais, para se diferenciarem das visitas
turísticas, são praticadas de maneira formal e/ou informal.
Como
exemplos de visitas formais, geralmente estão relacionadas a motivos comercias:
Visite apartamento mobiliado/ Venha visitar a nossa nova loja/ Agende uma
visita/ Faça um cartão de visita. Em outros casos, podem também se referir à
ação do médico em visitar o paciente em recuperação ou logo após, ou vice-versa; e representantes de instituições para verificação do estado de
algum lugar ou pessoa, por exemplo, a Vigilância Sanitária visitando um
estabelecimento ou um Assistente Social que visita os pais ou futuros pais de
uma criança.
Por
outro lado, são nos exemplos mais informais dessas visitas sociais, que, de
fato, pode acontecer uma abertura para o outro. É na ação de visitar alguém,
próximo ou distante, que pode ser instabilizado o crescente individualismo
presente na cidade. As visitas ou o ato de visitar movem um deslocamento em
direção ao outro urbano, sem que haja uma intenção objetiva, partindo da livre escolha
do visitante e da recepção do visitado, possibilitando trocas vindas de múltiplos
lugares.
***
Os passos se iniciam em busca de um mapa
possível. Como se localizar? A cidade se abre num mundo gigantesco onde todo
caminho é caminho, toda rua pode ser uma linha a ser seguida. Vou. Volto.
Preciso de um mapa. Talvez possa pedir.
- Oi,
você teria um mapa para me arrumar?
- Veja
na cabine ao lado.
- Onde
você quer chegar?
-
Preciso andar por aqui. Você pode me ajudar?
Ela
desenha um mapa no verso de um anúncio de empresa de Taxi, me explica alguns
desses caminhos. Seus caminhos, ou, o que ela considera importante ser
localizado naquele entorno.
Vou.
Seguir/guiar
esse mapa sem placas. Orientar-me pela ajuda das pessoas, encontrar seus nomes:
Nilza,
Berrel, Leonardo, Damião, Mariana, Regina, Sátiro, Negão, Buiu, Clayton,
Vagner.
- Por
que você quer saber o meu nome?
---
Estacionamento.
Lanchonete. Ponto de ônibus. Posto de gasolina. Uma coleção de rostos sem nome.
Uma visita. Um lugar banal.
---
A
cidade se abre em labirinto. Infindáveis caminhos que desembocam em outros
caminhos, que continuam a dar em outros caminhos. Toda rua é rua para entrar,
todo caminho é caminho para seguir. Pessoas passam continuamente, locais se
marcam como pontos de referência para encontrar-se em meio a lugares marcados.
Aos poucos, pessoas-lugares: Jô, do táxi. Nilza, da lanchonete. Leonardo, do estacionamento.
Damião, do posto de gasolina. Buiu, da oficina. Vagner, da Atento. Os locais
que pertencem à grande cidade tornam-se um sobre-nome.
A
visita, até então, próxima da ação dadaísta, ganha mais um contorno. Aqueles
lugares já não são assim tão banais, mas, lugares que ganharam nomes através
dos rostos, das pessoas que ali estão, da ação co-presente que corta o
emudecimento das falas e se dirige em direção ao outro.
As
pessoas e seus lugares vão desenhando esse mapa, fazem seu contorno tal qual as
formas de uma constelação, modo antigo de localização através das estrelas.
Pessoas que, como estrelas localizadas no céu, ajudam o caminhante a percorrer
seus traçados pela Cidade-Universo.
Como
encontrar um lugar em que se possa voltar? Como voltar?
Constelação Barra Funda: Primeira estrela
Em
pouco tempo, aquele rosto já não é mais sem nome. É da Jô, que usa a camiseta
do Led Zepellin, que faz horários alternados e que mês que vem vai mudar de
turno. Talvez leve uns dois meses para encontrá-la novamente por aqui, nesse
horário. Horário noturno, em que as estrelas podem nos mostrar os caminhos.
Em
seu mapa-constelação da Barra Funda encontram-se lugares que ganharam nomes
também. Novas estrelas.
A
lembrança vem com a gente, pode ser lembrancinha, pode ser presente, pode ser
presença. Lembrança fica, mas vai também. Lembrança que vai sem deixar de
ficar. Sem a necessidade de que façamos dela um objeto, ela se organiza na voz,
com sons e palavras, nas imagens criadas, nas sensações que são compartilhadas
quando se conta sobre algo que foi vivido.
No
caminho percorrido, recolho uma lembrança, vem de um jardim, aparentemente,
seco. Alguns minutos e os movimentos da cidade percorrem esse jardim, já não
tão seco assim, percebo algumas flores que insistem em permanecer, quase que
escondidas.
“A
lâmpada imita a lua,
Há
flores,
No seco
jardim
O trem
passa e manda que todos se calem
Mas,
todos continuam passando.”
Permaneço
mais um tempo ali, observando aquele lugar e sendo observada pelos que passam.
A cidade que não é feita para olhar, é para passar, é para esperar e
atravessar. Sumir em meio à multidão de rostos sem nome que seguem para seus
universos próprios. Caminho de volta até que a cabine que marca a primeira
estrela dessa constelação apareça novamente. Chego. Ela sorri. Abre a porta e
pede que eu chegue mais perto. Entrego-lhe a lembrança-souvenir recolhida no
jardim. Ela agradece e a deixa junto das outras que recebeu na mesma noite: em
sua própria lembrança.
[1]
Sobre as visitas dadaístas e as visitas realizadas no período modernista no
Brasil, ver JAQUES, Paola Berestein. “Elogio aos errantes”. Salvador : EDUFBA,
2012.