sábado, 16 de maio de 2015

Constelação Barra Funda ou como estrelas nômades podem se visitar?

Atravessar com a performance, Coletivo Parabelo, Barra Funda SP/2015


Por Valéria Ribeiro
Perfomeira Visitante das Residências Nômades 
UNESP/Barra Funda e CIEJA/Ermelino Matarazzo

A visita dadaísta foi uma errância urbana que consistia em visitar os lugares banais da cidade ou os lugares que não tinham razão para existir, em contraposição à fetichização dos locais geralmente ligados à arte. De acordo com a arquiteta Paola Berenstein Jacques, no movimento modernista brasileiro várias visitas e excursões foram feitas por artistas brasileiros e estrangeiros às favelas cariocas.[1] Essas práticas de visitar algum lugar banal instabilizam a relação museológica dos espaços urbanos, deslocam a passividade do olhar e abrem caminhos para uma nova forma de olhar, de compor e se por com a cidade.
Se, no entanto, nos remetermos a uma noção um pouco mais ampliada da ideia de visita, poderemos encontrar uma série de relações possíveis nessa prática de ir em direção ao outro urbano. No caso dos dadaístas, tratava-se de visitar um lugar específico, crítica aos roteiros turísticos de visitas. Porém, em nossas práticas cotidianas incluímos também algumas formas de visitação. Essas, que poderiam ser chamadas de visitas sociais, para se diferenciarem das visitas turísticas, são praticadas de maneira formal e/ou informal.
Como exemplos de visitas formais, geralmente estão relacionadas a motivos comercias: Visite apartamento mobiliado/ Venha visitar a nossa nova loja/ Agende uma visita/ Faça um cartão de visita. Em outros casos, podem também se referir à ação do médico em visitar o paciente em recuperação ou logo após, ou vice-versa; e representantes de instituições para verificação do estado de algum lugar ou pessoa, por exemplo, a Vigilância Sanitária visitando um estabelecimento ou um Assistente Social que visita os pais ou futuros pais de uma criança.
Por outro lado, são nos exemplos mais informais dessas visitas sociais, que, de fato, pode acontecer uma abertura para o outro. É na ação de visitar alguém, próximo ou distante, que pode ser instabilizado o crescente individualismo presente na cidade. As visitas ou o ato de visitar movem um deslocamento em direção ao outro urbano, sem que haja uma intenção objetiva, partindo da livre escolha do visitante e da recepção do visitado, possibilitando trocas vindas de múltiplos lugares.
***
 Os passos se iniciam em busca de um mapa possível. Como se localizar? A cidade se abre num mundo gigantesco onde todo caminho é caminho, toda rua pode ser uma linha a ser seguida. Vou. Volto. Preciso de um mapa. Talvez possa pedir.
- Oi, você teria um mapa para me arrumar?
- Veja na cabine ao lado.
- Onde você quer chegar?
- Preciso andar por aqui. Você pode me ajudar?
Ela desenha um mapa no verso de um anúncio de empresa de Taxi, me explica alguns desses caminhos. Seus caminhos, ou, o que ela considera importante ser localizado naquele entorno.
Vou.
Seguir/guiar esse mapa sem placas. Orientar-me pela ajuda das pessoas, encontrar seus nomes:
Nilza, Berrel, Leonardo, Damião, Mariana, Regina, Sátiro, Negão, Buiu, Clayton, Vagner.
- Por que você quer saber o meu nome?
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Estacionamento. Lanchonete. Ponto de ônibus. Posto de gasolina. Uma coleção de rostos sem nome. Uma visita. Um lugar banal.
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A cidade se abre em labirinto. Infindáveis caminhos que desembocam em outros caminhos, que continuam a dar em outros caminhos. Toda rua é rua para entrar, todo caminho é caminho para seguir. Pessoas passam continuamente, locais se marcam como pontos de referência para encontrar-se em meio a lugares marcados. Aos poucos, pessoas-lugares: Jô, do táxi. Nilza, da lanchonete. Leonardo, do estacionamento. Damião, do posto de gasolina. Buiu, da oficina. Vagner, da Atento. Os locais que pertencem à grande cidade tornam-se um sobre-nome.
A visita, até então, próxima da ação dadaísta, ganha mais um contorno. Aqueles lugares já não são assim tão banais, mas, lugares que ganharam nomes através dos rostos, das pessoas que ali estão, da ação co-presente que corta o emudecimento das falas e se dirige em direção ao outro.
As pessoas e seus lugares vão desenhando esse mapa, fazem seu contorno tal qual as formas de uma constelação, modo antigo de localização através das estrelas. Pessoas que, como estrelas localizadas no céu, ajudam o caminhante a percorrer seus traçados pela Cidade-Universo.
Como encontrar um lugar em que se possa voltar? Como voltar?

Constelação Barra Funda: Primeira estrela

Em pouco tempo, aquele rosto já não é mais sem nome. É da Jô, que usa a camiseta do Led Zepellin, que faz horários alternados e que mês que vem vai mudar de turno. Talvez leve uns dois meses para encontrá-la novamente por aqui, nesse horário. Horário noturno, em que as estrelas podem nos mostrar os caminhos.
Em seu mapa-constelação da Barra Funda encontram-se lugares que ganharam nomes também. Novas estrelas.
A lembrança vem com a gente, pode ser lembrancinha, pode ser presente, pode ser presença. Lembrança fica, mas vai também. Lembrança que vai sem deixar de ficar. Sem a necessidade de que façamos dela um objeto, ela se organiza na voz, com sons e palavras, nas imagens criadas, nas sensações que são compartilhadas quando se conta sobre algo que foi vivido.
No caminho percorrido, recolho uma lembrança, vem de um jardim, aparentemente, seco. Alguns minutos e os movimentos da cidade percorrem esse jardim, já não tão seco assim, percebo algumas flores que insistem em permanecer, quase que escondidas.

“A lâmpada imita a lua,
Há flores,
No seco jardim
O trem passa e manda que todos se calem
Mas, todos continuam passando.”

Permaneço mais um tempo ali, observando aquele lugar e sendo observada pelos que passam. A cidade que não é feita para olhar, é para passar, é para esperar e atravessar. Sumir em meio à multidão de rostos sem nome que seguem para seus universos próprios. Caminho de volta até que a cabine que marca a primeira estrela dessa constelação apareça novamente. Chego. Ela sorri. Abre a porta e pede que eu chegue mais perto. Entrego-lhe a lembrança-souvenir recolhida no jardim. Ela agradece e a deixa junto das outras que recebeu na mesma noite: em sua própria lembrança.





[1] Sobre as visitas dadaístas e as visitas realizadas no período modernista no Brasil, ver JAQUES, Paola Berestein. “Elogio aos errantes”. Salvador : EDUFBA, 2012.