terça-feira, 7 de junho de 2011

RELEITURAS – POR UM DISCURSO PERFORMÁTICO


Edifícil Guadalajara, Denise Rachel, Junho (2011)

Por Denise Rachel 


(...) se minha cultura se estende a tudo então é certo e inevitável para mim “naturalizá-la” como absoluta.(...)

(Terry Eagleton, ao criticar uma visão culturalista de mundo, in A Ideia de Cultura).


Estamos inseridos em um mundo recriado e moldado pelo homem e sua capacidade de produzir cultura. Sumariamente fechado ao contato com o desconhecido, o diferente, o selvagem, o outro, como forma de preservar o conforto adquirido, o que é habitual e artificialmente naturalizado, como forma de manter a ordem e impedir o risco de qualquer tipo de contaminação. Civilizado por um senso de pureza e limpeza em um local onde reina o lixo, o luxo, o supérfluo, o descartável, diversas modalidades de poluição e neuroses.

O artista contemporâneo ocidental está inserido neste contexto e sua arte contaminada e delimitada por demandas políticas e econômicas que incorporam inclusive as manifestações da contracultura. A arte da performance, já cooptada por este sistema mercadológico, traz um histórico de combate aos mecanismos de naturalização dos efeitos proporcionados pela sociedade de consumo na qual vivemos, principalmente em obras feitas durante as décadas de 60 e 70, do século XX. Voltar o olhar para artistas e obras deste período proporcionou uma performofagia de conceitos, materiais e recursos estéticos na concepção das experiências que o Coletivo Parabelo estabeleceu em contato com as idiossincrasias do bairro do Belém, em São Paulo.

A assimilação de elementos propostos nas obras de Artur Barrio, Lygia Pape e Coletivo Alerta! associadas ao contexto do bairro do Belém, trouxeram à tona uma nova performance. Nova no sentido de deglutir e não reproduzir o que foi feito por outros artistas, em um formato que se opõe à ideia de reperformance proposta por Marina Abramovic na exposição retrospectiva intitulada The Artist is Present no MOMA – Museum of Modern Art em Nova York, em 2010, na qual propõe a representação de performances antigas por jovens artistas previamente treinados. Esta oposição acontece porque o conceito de reperformance pensado por Abramovic, possui aspectos completamente voltados para a adequação da obra performática às convenções impostas pelo mercado de arte, as quais envolvem pagamento de direitos autorais aos autores das obras reperformadas e se preocupa mais com a conservação da peça em si (através de uma encenação) do que com o seu significado, ao desloca-la de seu tempo e espaço originais com o intuito de reproduzi-la teatralmente em uma instituição (tempo e espaço) que muitas vezes não lhe diz respeito. A própria crítica norte-americana apontou problemas nesta forma de apresentar performances, ao afirmar que os artistas responsáveis por reperformar determinadas obras que exigiam maior disponibilidade e controle psicofísicos, deixaram a desejar. A reperformance torna-se assim um mecanismo de espetacularização da performance e acaba por contrariar princípios básicos desta expressão artística, considerada como zona de experimentação, acontecimento sem final predeterminado, disponível ao devir, muitas vezes contrária aos padrões da Instituição Arte e essencialmente efêmera.

Em Edifícil Guadalajara a apropriação da obra P.H., feita por Barrio em 1969, foi uma recontextualização da obra e não uma reperformance. Ao levar em conta os princípios de criação do artista, nos quais a precariedade dos materiais utilizados já é uma denúncia à situação da arte (e não só dela) no Brasil, escolhemos o papel higiênico como matéria organizada para a ação de limpeza do dia-a-dia, juntamente com vassouras, rodos e baldes, evidências da preocupação extremada com a higiene. Barrio propôs uma ação ao ar livre, na natureza urbanizada do Rio de Janeiro, vento, corpos e árvores delinearam a poética do papel higiênico em seu trabalho. Enquanto Edifícil Guadalajara acrescentou a denúncia à política higienista dos moradores das propriedades privadas do bairro do Belém, a partir do mesmo material.

Debaixo de um viaduto-morada, chamado Guadalajara, a ação começa com a ironia de uma possível ginástica laboral realizada com auxílio dos materiais de limpeza e comandos alardeados em um megafone, por uma persona retirada da ação Mendiga, feita pela primeira vez em 2003, como ginástica apropriada à prática em transportes coletivos ministrada por uma pedinte em troca de dinheiro. Nesta recontextualização, a pedinte não espera pagamento pela sua aula de ginástica, mas sim a adesão de pessoas interessadas na ação da limpeza física e psíquica. Ação esta preenchida por ícones presentes no imaginário histórico de opressores e oprimidos através de palavras de ordem, evocando a Ku Klux Klan, Tradição Família e Propriedade em um condicionamento comportamental a partir de exercícios físicos impostos por uma situação didática que remete à condição de professor e alunos, comandante e comandados.

Quando atinge o ápice da ironia, a ação toma um novo rumo ao trazer à tona a obra Divisor, também de 69, de Lygia Pape. O lirismo toma conta da ação a qual propõe um trajeto que percorre a parte inferior do viaduto-morada até chegar ao Largo do Belém, rompendo os limites entre espaço urbano e espaço estético, com um simples tecido branco, povoado por corpos sensíveis, pensantes, latentes, que perpassam o ambiente envolvendo o outro sem diferenciá-lo por fatores econômicos, sociais, étnico-raciais, culturais. A materialização de uma utopia.

Ao presentificar os elementos abordados nas obras citadas anteriormente, se estabelece uma crítica a um padrão comportamental que se repete historicamente com pequenas variações, desta forma, a escolha por apropriar-se destas obras não está exatamente na releitura e reprodução de trabalhos antigos com caráter efêmero, mas na retomada de um discurso estético que ainda provoca e entra em choque com o sistema vigente. Edifícil Guadalajara agrega diferentes abordagens de engajamento artístico, como maneiras de interpretar os fenômenos artificialmente naturalizados em nosso convívio urbano.

O sentido de associar experiências antigas às arru(ações) atuais do Coletivo Parabelo, se deu a partir da constatação do estado não relacional entre moradores da propriedade privada e moradores do espaço público, no Belém, desencadeando em uma sequência de ações que buscam dialogar com a indiferença, a desigualdade e a falta de perspectiva de mudança. Desta forma, em Edifícil Guadalajara, o “instinto” de preservação de um bairro idílico, no qual apenas os civilizados podem coabitar, é alvo de questionamento. Nesta performance, a civilização é encarada como uma construção cultural fascista, baseada nas ideias de repressão, puritanismo, da moral e dos bons costumes, da tradição, família e propriedade como modelo único de existência “saudável”. Ideologia que compõe um quadro social em que tudo o que fugir destes padrões deve ser varrido, banido, marginalizado para o bem da sociedade. Diante deste fato, o sentido de ruptura emerge na experiência artística à margem das instituições, na qual a rua se transmuta em discurso ético e estético, no embate entre cultura (plural, dentro do senso de alteridade) e civilização (unívoca, no sentido de dominação).