| Tramacidades, Eliane Andrade, Maio (2011) |
Por Bárbara Kanashiro.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão".
João Cabral de Melo Neto
Este artigo tem origem nas reflexões sobre as arru(ações) do Coletivo Parabelo no município de São Paulo, e se propõe a pensar a relação entre corpo e cidade. Mais especificamente, analisa duas arru(ações) realizadas no mês de maio: Tramacidades e Narrativas Públicas.
A aproximação entre as mesmas não é casual. Em Tramacidades, fibras de lã vermelha presos ao corpo de Eliane Andrade costuram o espaço através de tramas criadas pelos transeuntes. Em Narrativas Públicas, Bárbara Kanashiro propõe uma escrita performática aos moradores do Belenzinho. Entretanto, há um elemento-chave para a compreensão das duas performances em seu contexto: o espaço público e sua dimensão política.
O que pode parecer trivial, na realidade modifica completamente as relações entre os tecidos sanguíneo, social e urbano. Por exemplo, a composição de fios de lã, quando realizada no terminal de ônibus do metrô, provocou alarde aos funcionários do metrô, que exigiram o término da ação. Isso não só revela a privatização do espaço público pelas instituições, como evidencia as contradições que atravessam esses tecidos: os participantes questionaram os funcionários sobre a impossibilidade de utilizar o terminal de ônibus com outros fins que não sejam destinados ao consumo e a circulação de pessoas.
Com características distintas, Narrativas Públicas vai ao encontro dessas questões, pois ao passo em que esta [bem como as demais arru(ações)] só se realiza com a participação ativa do espectador, o status de obra de arte e sua aura são colocados em xeque. De acordo com Nicolas Borriaud: “A aura não se encontra mais no mundo representado pela obra, sequer na forma, mas está diante dela mesma, na forma coletiva temporal que produz ao ser exposta.”. (2009)
Ou seja, opera-se um deslocamento radical da aura artística para seu público. O que prevalece é a necessidade de coletivizar o ato performativo materializado na escrita, o desejo de promover uma experiência de aproximação, subjetivação e alteridade. Suely Rolnik, em seu artigo “Subjetividade antropofágica”, propõe um conceito homônimo:
A antropofagia atualiza-se segundo diferentes estratégias do desejo (...) Este modo depende de um grau significativo de exposição à alteridade: enxergar e querer a singularidade do outro, sem vergonha de enxergar e de querer, sem vergonha de expressar este querer, sem medo de se contaminar, pois é nesta contaminação que a potência vital se expande, carregam-se as baterias do desejo, encarnam-se devires da subjetividade: a fórmula tupi. (...) Esta capacidade depende de uma segunda característica do modo antropofágico de subjetivação atualizado em seu vetor mais ativo: um certo estado do corpo, em que suas cordas nervosas vibram a música dos universos conectados pelo desejo; uma certa sintonia com as modulações afetivas provocadas por esta vibração; uma tolerância à pressão que tais afetos inusitados exercem sobre a subjetividade para que esta os encarne, recriando-se, tornando-se outra. (1998)
A desobstrução da subjetividade através da ativação do referido estado do corpo, articulada à coletivização do fazer artístico possui uma dimensão política estratégica para o Coletivo: confrontar o processo de reificação humana generalizado no capital. A quem quiser tecer a manhã, os fios estão soltos.
(2009) BORRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins, p. 85.
(1998) ROLNIK, Suely. Subjetividade antropofágica. In: In: HERKENHOFF, Paulo e PEDROSA, Adriano (Edit.). Arte Contemporânea Brasileira: Um e/entre Outro/s, XXIVa Bienal Internacional de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1998. p. 128-147.