| Tabula Rasa (Eliane Andrade), Cuidado Escola, E.E Maria José 2011 |
Por Diego Marques.
Cuidado Escola pode ser um Programa de ações performativas. Pelo menos é isso que nos diz Eleonora Fabião em seu artigo Performance e Teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea, no qual a autora nos propõe a referida palavra conceito em sua tentativa de delinear a natureza do acontecimento performativo. A partir de uma perspectiva deleuzeguatarriana, Eleonora propõe uma aproximação entre Performance como linguagem e Programa como conceito ao reconhecer nestes um ”tipo de ação metodicamente calculada, conceitualmente polida, que em geral exige extrema tenacidade para ser levada a cabo” também denominando-os como “motores de experiência” (Fabião, 2008.)
À medida que Performance e Programa revelam-se como ativadores de experiência, concomitantemente promovem a desautomatização da percepção de si mesmo, do outro, do tempo e do espaço em níveis de complexidade variados. Neste sentido, Cuidado Escola propunha ações a fim de dar corporeidade às relações sociais que constituem os espaços de educação formal na contemporaneidade, através de Performances que utilizavam o corpo do performer e do público para evidenciar o corpo mundo – neste caso, o escolar.
Deste modo, enquanto em uma sala de aula, tínhamos uma performer escrevendo uma mesma frase, na qual se negava a ser uma copista –e a era ao mesmo tempo-, em outra podíamos ter uma performer ajoelhada em milho vigiada por uma microcâmera operada pelo público. Enquanto em uma sala de aula uma performer dava seu depoimento pessoal e enrolava o filho em faixas de interdição, em outra tínhamos um performer tomando um texto batido no liquidificador. Isso para não falar sobre números e leite em pó – coisas cujo quais, apesar de toda incongruência, a administração pública municipal, estadual e federal insiste em associar à educação.
A despeito do recesso escolar e da reforma pela qual o prédio está submetido, Cuidado Escola propôs aos performers, participantes, educadores, alunos e funcionários uma relação corpo a corpo com o real, através de uma investigação sobre a realidade escolar, procurando problematizar as abordagens de ensino aprendizagem que contextualizam a mesma. Em outros termos, se retornarmos ao artigo de Eleonora, é possível dizer que nos tornamos todos Complicadores Culturais uma vez que, através do acontecimento performático, turbinamos a relação do cidadão com a pólis – estávamos ocupando e debatendo o espaço público através do fazer artístico – do agente histórico com seu contexto – provocando-nos enquanto sujeitos da construção das relações que constituem o ambiente escolar, em suma, turbinando a relação do vivente com o tempo, o espaço, o corpo, o outro e consigo (Fabião, 2008).
Ideologicamente anárquica, a Performance como Programa desprograma organismo e meio, fomentando a instauração de uma T.A.Z - Zona Autônoma Temporária conceito criado por Hakim Bey, cujo qual, segundo Carminda André, “pode ser um espaço de intimidade e um espaço inventado. Por outro lado, ao contrapor a idéia de revolução como a ação do levante, Bey potencializa a TAZ a partir de uma característica guerreira, masculina. Porém, o vocabulário bélico de Bey não é uma afirmação da guerra. Ao contrário, reconhece o funcionamento do campo de guerra para desmontá-lo, com os próprios dispositivos criados pelos dominadores (tecnologias, discursos manipulatórios). É muito mais um ato de recusa ao normativo, ao disciplinar, à espetacularização da vida, à homogeneização dos comportamentos, ao capitalismo de mercado, ao Estado, à idéia de nacionalidade, às fronteiras políticas, à propriedade privada, ao sujeito universal, aos corpos medicados, do que um ataque. A própria experiência de novos usos do espaço público e a subjetivação dela desprendida, estará sempre na ordem das coisas proibidas na sociedade do controle. Por isso, muitas experiências de pico levam os participantes à indisciplinar seus corpos, a torná-los corpos sem órgãos como define Gilles Deleuze, a inventar novos possíveis para si, novas possibilidades éticas” (Carminda Andre in Teatro e Resistência - Ou Rua, espaço de trocas – 2011).
Portanto, não nos surpreende que performers e público tenham se permitido afetar corporeamente pelas ações empreendidas durante a presentificação de Cuidado Escola, através de insurreições poéticas que libertaram performers do milho e de sua saga copista. Giz e Milho transformaram-se em corpos indisciplinados pelo espaço, em uma efervescência dionisíaca que pouco, ou nada lembrava a rigidez apolínea característica da escola de todos os dias, remetendo-nos aquilo que Eleonora Fabião chama de bio-política dos programas performativos, uma vez que programas criam corpos naqueles que os performam e naqueles que são afetados pela performance, anunciando que corpos são sistemas relacionais abertos, altamente suscetíveis e cambiantes (Fabião, 2008).
Nesta perspectiva, ao potencializar o que Marcel Duchamp denominou como coeficiente de arte, Cuidado Escola instaurou no aqui e no agora um tempo-espaço relacional aproximando-se da estética proposta por Nicolas Borriaud. Atuando na escola como infra fino social, ou seja, enquanto micro estrutura no qual as ações cotidianas são determinadas pela macro estrutura e suas grandes trocas, as performances também buscavam aquilo que o curador de arte francês chama de co presença do espectador diante da obra, ao permitir ao público reconhecer-se como sujeito diante desta, não no âmbito da identificação ou da mera interação, mas atuando diretamente na construção do discurso artístico. Cuidado Escola pode ser uma utopia de aproximação. Pelo menos é isso que nos diz Nicolas Borriaud ao referir-se às obras de arte as quais parece mais urgente inventar relações possíveis com os vizinhos de hoje do que entoar loas ao amanhã. É só, mas é muito.
Cuidado Escola consiste em cinco Performances, a saber: Tabula Rasa (Eliane Andrade), Educação não é Mercadoria (Bárbara Kanashiro) Creche (Thalita Duarte e Gregório Vitorino Duarte) Vigiar e Punir (Denise Rachel) e Homo liquidificador 2.0 (Diego Marques). Todas as Performances foram concebidas para o evento Porto de Poéticas Teatrais organizado pelo grupo de teatro Tia Tralha com apoio do Programa VAI, aos quais registramos aqui o nosso agradecimento.