sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Arru(ação) #2 Interlagos_SP: Corporeidades Urbanas X Corporeidades Performativas.

Deriva com Máquina Fotográfica, Arruação#2_Interlagos, Denise Rachel



A cidade perfura
o corpo
até a medula.
Contamina os ossos
com seus crimes.
Bica o fígado,
pesa sobre os rins.
Imprime seu labirinto de cinzas
na árvores dos pulmões.
A cidade finca raízes
no espaço das clavículas.
Esta cidade: minha cela.
Habita em mim
Sem que eu habite nela.
(A Cidade no Corpo, Donizete Galvão)



Por Denise Rachel e Diego Marques.


A institucionalização da arte desencadeou um processo de negação desta forma expressiva em seus moldes convencionais no decorrer do século XX, estes modelos foram questionados diante de adventos catastróficos como as duas grandes guerras mundiais, junto ao crescente desenvolvimento industrial e o decorrente avanço tecnológico. Fatores estes que impulsionaram na ruptura com preceitos estéticos e poéticos do fazer artístico, em busca de uma aproximação entre vida e arte.

Os movimentos das chamadas vanguardas históricas, através de manifestos, provocações, rupturas com o entendimento de arte restrita aos museus, teatros, salas de concerto, escolas de belas artes, à recepção estética racional e contemplativa, trouxe um caráter contra cultural, sinestésico-cognitivo e irracional para o fazer/fruir artístico. E, radicalizando esta linha de pensamento, em meados da década de cinquenta (período de reconstrução da Europa no pós-guerra), os Situacionistas, grupo multidisciplinar de pensadores,  elaboraram  estratégias para a construção de um novo urbanismo, estratégias estas que relacionavam um entendimento lúdico e descondicionante das ações e arquitetura impostas pelo sistema capitalista à organização e controle das cidades. Durante este período, o uso situacionista da arte gerou as técnicas de desvio ou détournement, através da apropriação de recursos publicitários ou de objetos de uso cotidiano como obra de arte que contesta os padrões impostos pela sociedade de consumo.

Neste contexto, Renato Cohen considera o surgimento da performance (sem desconsiderar suas origens mais remotas ligadas à rituais e à constituição do homem como ser cultural) como uma linguagem de contravenção, a qual sequer respeita as limitações entre as disciplinas artísticas, pelo seu caráter híbrido e descobre o corpo como suporte artístico através de experiências propostas  pela body art, que rompe as delimitações da tela, da escultura e da representação, ao colocar o corpo como sujeito e objeto da ação artística em temáticas relacionadas à profanação do sagrado e à quebra de tabus através de uma abordagem ritualística. Dentro desta perspectiva, pode-se considerar tanto a body art, quanto o happening e a performance como manifestações artísticas emancipatórias em relação ao uso do corpo, o qual, segundo Michel de Certeau, permanece preso aos mecanismos de circulação e produção de mercadorias nas cidades planejadas para o controle e para a funcionalidade. Pois, ao contrário do que é estabelecido pelo cotidiano cego dos passantes na metrópole, estas manifestações artísticas buscam uma ritualização do tempo e espaço presentes para repensar e discutir a realidade.

A partir da apropriação destes conceitos, o Coletivo Parabelo realizou sua segunda Arru(ação) pelo bairro de Interlagos, em um uso situacionista da linguagem da performance. Ao retirar a ênfase da instituição arte concentrada no objeto artístico e desviá-la para a ideia e a prática (como propõe a arte conceitual, nos anos de 1960, ao pensar em um processo de desmaterialização da arte), nós (Coletivo Parabelo) nos colocamos à deriva nas imediações da Praça João Beiçola, estimulados pelo neologismo  “fonômenos” de Cildo Meireles, apreendendo fonemas e fenômenos no aqui-agora da rua, em um processo de cognição sinestésico-afetivo que desembocou na Arte Fluxus de Yoko Ono, a qual propõe a escuta do corpo do outro, na ruptura de limites impostos ao comportamento adequado socialmente. O contato com o corpo do outro e a construção corpórea de paisagens sonoras nos sensibilizou para um reconhecimento do espaço urbano povoado de sensações, sentimentos e desconstruções do que poderia ser considerado um “passeio” pelo bairro, afetados pelos tecidos sanguíneos, sociais e urbanos que se entrecruzam em um espaço de relação, rico em sentidos e significados que geram ambiências onde exterior e interior se comunicam.

Dessa forma, a constituição do fazer artístico que investigamos não considera o espaço urbano como mero cenário, pano de fundo para a arte instituída – aurática, apartada da realidade, restrita ao universo da representação, contemplativa e/ou participativa dentro das convenções estabelecidas entre artista e espectador – mas sim um componente sígnico das ações propostas, que por sua vez, problematizam tríades corpóreas performativas e urbanas: corpo objeto x corpo reificado, corpo real x social e corpo ambiente x corpo urbano.

O corpo objeto pode ser pensado a partir da perspectiva da body art e da performance, como suporte expressivo e concomitantemente, como corpo reificado através da perspectiva científico-tecnológica, como objeto de estudo, intervenção e modificação de sua constituição física e de seus caracteres biológicos, ou ainda, como mercadoria dentro das instituições capitalistas de produção, nas quais não possui poder de decisão diante da máquina do sistema. Imageticamente, no início do século XX, Chaplin representou o homem reificado como marionete das engrenagens industriais, em “Tempos Modernos”; hoje, esta metáfora se transforma em matrix operada por circuitos informacionais, como se estivéssemos entubados pela máquina, sem mais distinguir ilusão e realidade, no mundo em que o espetáculo, conceituado por Guy Debord, venceu.

O corpo social seria o caráter representacional que, como indivíduos, assumimos dentro da sociedade espetacular, a partir das relações estabelecidas com o outro, entendendo outro como tudo o que está presente no ambiente externo e que, dentro das convenções pré-estabelecidas pelo mercado, nos obriga a desempenhar papéis culturalmente arraigados, incutidos e padronizados que, em linhas gerais, são aceitos como naturais e inquestionáveis. Neste sentido, interessa à nossa prática performática uma abordagem destes tratos sociais por meio de um corpo real, que emprega sua autobiografia e sua materialidade num corpo a corpo com a periferia da capital paulistana, desautomatizando a percepção da mesma e diluindo as fronteiras entre arte e vida. 

Por último, através do entendimento de corpo ambiental, buscamos mapear os efeitos psicogeográficos gerados pelo corpo urbano nos indivíduos, uma vez que, racionalmente projetada para a eficácia na produção e circulação de mercadorias, a arquitetura da cidade controla e confina seus habitantes, mantendo-os constantemente imersos no fluxo espetacular capitalista. Ao inter relacionar estas corporeidades performativas e urbanas que tecem os fios da trama do tempo-espaço presente, nós do Coletivo Parabelo buscamos a construção de um vocabulário próprio, através de ações que propõem o descondicionamento dos corpos, nos diversos níveis de complexidades abordados anteriormente. Para tanto, necessitamos atuar dentro e fora das convenções artísticas, no intuito de integrarmos arte e vida em uma atitude detonadora de diferentes percepções e concepções de mundo, negando a lógica de funcionamento da indústria cultural, que privilegia produtos de fácil assimilação e incorporação dentro de padrões pré-estabelecidos; afirmando a criação de ambiências que proporcionem a ação crítica como TAZ (Zonas Autônomas Temporárias), conceito de Hakim Bey, isto é, espaços efêmeros, mobilizadores e de reverberação, que funcionem de forma diversa à lógica do capital, que tornem possível o estranhamento e questionamento diante de determinados fenômenos classificados como naturais dentro deste sistema. Assim poderemos vislumbrar outra mitologia da contemporaneidade, que se contraponha à matrix instituída em nossos corpos e consequentemente em nossa arte.