quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Corpo em Situ(Ação)




Diego Marques, Deriva com Situação Construída, Arruação #3 Interlagos_SP


A construção de situações começa logo após o desmoronamento moderno da noção de espetáculo. É fácil ver a que ponto está ligado à alienação do velho mundo o princípio característico do espetáculo: a não-participação. Ao contrário, percebe-se como as melhores pesquisas revolucionárias na cultura tentaram romper a identificação psicológica do espectador com o herói, a fim de estimular esse espectador a agir...  A situação é feita de modo a ser vivida por seus construtores. O papel do “público”, senão passivo pelo menos de mero figurante, deve ir diminuindo, enquanto aumenta o número dos que já não serão chamados de atores, mas num sentido novo do termo, “vivenciadores”.  (Guy Debord) 


Por Denise Rachel

Sentir a rua, sentir a cidade de olhos e sentidos bem abertos. Em busca da corporeidade dos homens lentos, pensada por Milton Santos, que se presentifica cotidianamente naqueles que vivem à margem do sistema. Nós, Coletivo Parabelo, pisamos com nossos pés o chão da metrópole e a observamos atentos, no intuito de encontrar as frestas – aberturas propícias para a construção poética ou como diria Guy Debord, ambiências que geram uma situação construída.

Neste movimento lento, as situações construídas eram registradas em uma imagem sintética e após dois minutos de experimentação a deriva prosseguia. Esta ação simples de caminhar, escolher um local e uma posição para parar e ser fotografado poderia remeter imediatamente a um passeio turístico por um lugar desconhecido. Entretanto, há uma importante diferença entre a relação que o turista estabelece com o local visitado e a relação que um corpo à deriva estabelece com o entorno. Enquanto o turista, premido pelo tempo e a vontade de conhecer inúmeros locais indicados em um guia turístico, almeja registrar cada objetivo alcançado dentro deste mapa preestabelecido, sem preocupar-se em experienciar o momento, mas chegando ao extremo de ”colecionar momentos”, ao congelar o instante em fotografias para um futuro esquecimento ou uma lembrança remota numa sequência de imagens fragmentadas e insipientes; o indivíduo que se propõe realizar uma deriva transforma-se em um corpo errante, sem preocupações cartesianas e sim psicogeográficas: quais são os afetos suscitados por este lugar? E, ao encontrar ambiências propícias à criação, propõe a construção de uma situação a qual pode ser registrada ou simplesmente vivenciada. O corpo errante não está preocupado com a cidade-espetáculo, repleta de pontos turísticos e atrações previstas, preocupa-se em construir a sua história dentro daquele espaço percorrido, em uma negação do convencional.

Permanecer dois minutos em uma posição que destoa das relações convencionais que podem ser estabelecidas com e no espaço público, acionou pequenos processos de ruptura com os padrões impostos pela sociedade de consumo. Os passantes, com suas mais variadas leituras das situações construídas, se relacionavam com uma contundência crescente, proporcional à radicalidade da ação. Deitar “tranquilamente” no meio fio, afundando o rosto no lixo desordenado da metrópole, pode provocar lentidão no trânsito de uma avenida movimentada – assim, interrompeu-se o fluxo frenético motorizado, pelo período de tempo que a curiosidade costuma solicitar, mas as buzinas irromperam intervindo na ponte que se estabeleceu entre arte e vida e a máquina voltou a funcionar dentro da normalidade. Um momento de observação, de quebra do movimento contínuo da engrenagem urbana que interrompeu a passividade diante dos fatos (que se encaixam no que é considerado normal) e propôs uma fissura através do choque desencadeador de um outro olhar a respeito da relação que geralmente se estabelece entre sujeito e cidade. Este olhar questiona o acontecimento, se desterritorializa a partir do choque e de uma busca por referências para compreender a situação construída, para se reterritorializar durante o retorno à ação interrompida pelo choque, mas de maneira diversa ao estado anterior à ruptura. Desse modo, a invasão do território da normalidade cotidiana da metrópole através das situações construídas, almeja produzir um movimento de desequilíbrio, “perda do chão”, perda de referência no intuito de ativar a participação, o questionamento, a relação, o tomar parte de um acontecimento.

Por esta perspectiva, o corpo errante na periferia da cidade deparou-se com lacunas deixadas pelo projeto arquitetônico e urbanístico da mesma: terrenos baldios, casas e prédios abandonados, construções em ruína, espaços em desuso, espaços interrompidos, ruas abertas pelos moradores locais, a arquitetura da favela – que negam de forma veemente a lógica funcional da cidade-espetáculo, feita para ser vista e operada pelos seus mecanismos de manutenção e não vivida. Estas lacunas encontradas estão, de maneira intrínseca, impregnadas por um espírito de resistência ao projeto imposto aos cidadãos que povoam este corpo urbano, ao demonstrar sua inócua ou mínima funcionalidade dentro do sistema de produção e veiculação de mercadorias.

Ao interagir com os escombros presentes nestas falhas no planejamento arquitetônico e urbanístico da cidade, abriram-se frestas para a aproximação entre o corpo (veículo de linguagem) do performer e o corpo cotidiano dos moradores da região do Jardim Primavera. Desse modo, surge um tempo-espaço para diálogo, que nega a ideia da cidade-espetáculo fragmentada e alienante, e fomenta a participação na construção do espaço urbano a partir do (re)conhecimento de si, do outro  e da cidade. Dentro da ruptura (proposta pelo performer) com as convenções pode-se criar vínculos afetivos e entrelaçar-se diferentes trajetórias que transformam um momento capturado pela fotografia, que poderia ser um recurso espetacular, em uma construção significativa, uma memória geradora de múltiplas leituras, um verso que compõe a cartografia performática das Arru(ações) realizadas na periferia da zona sul de São Paulo.