Por Bárbara Kanashiro
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| Queixa, Perfografia#8_Pirituba/SP, 2013 |
Na edição do Perfografia#8_Pirituba/SP,
pode-se dizer que experimentamos diferentes modalidades de partilha do
sensível. Jacques Rancière propõe este conceito dentro de um contexto em
que discute as relações entre política e estética, de modo que existiria uma
estética na base da política exatamente porque há na base da organização do que
ele chama de comum uma dimensão eminentemente estética.
Para
o autor, partilha do sensível seria:
O sistema de evidências que
revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele
definem lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa portanto,
ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas. Essa repartição
das partes e dos lugares se fundem numa partilha de espaços, tempos e tipos de
atividades que determina propriamente a maneira como um comum se presta
à participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha. (2009, RANCIÈRE)
Podemos
entender o comum como o espaço onde os sujeitos constituem sua
subjetividade, a qual é constituída sempre socialmente e, portanto,
necessariamente política. A dimensão estética do comum está na medida em
que este se organiza como uma divisão dos modos de ser e de fazer, de
competências e habilidades.
Dessa
forma, a partilha do sensível atua de modo a dar visibilidade a quem
pode tomar parte no comum em função daquilo que faz, do tempo e do
espaço em que determinada atividade se exerce. Por exemplo, pode-se questionar
como o sistema de arte identifica e legitima os modos de produção tanto na
esfera micro quanto macropolítica.
O
chamado “coletivismo artístico” é considerado um movimento que se contrapõe às
formas normatizadas pelo sistema de arte e que, no Brasil, é localizado
principalmente na década de 90, com o advento do neoliberalismo. Entretanto, as
chamadas vanguardas históricas já desenvolviam projetos em conjunto no início
do século XX, como o Cabaret Voltaire Dada, as sínteses futuristas e a
LEF (Frente de Esquerda das Artes) dos construtivistas russos.
Ao
propor outras distribuições das maneiras de fazer e das ocupações sociais
(Rancière faz referência a Platão, que entende que o princípio de uma sociedade
bem organizada é que cada um faça apenas uma coisa, aquela a qual a sua
“natureza” o destina), essas iniciativas coletivas e os coletivos artísticos
promovem partilhas do sensível, porque criam possibilidades de perceber, de
experimentar e de organizar o comum.
Nesse
sentido, o Coletivo Parabelo propõe coletividades temporárias por onde
passa, porque promove agenciamentos efêmeros e descentralizados na esfera do comum,
ao atuar na fronteira do visível e do invisível das relações sociais. Aproxima-se
do entendimento de Zonas Autônomas Temporárias (TAZ) de Hakim Bey, compreendida
pelo autor como “a inevitável tendência dos indivíduos de se juntarem em grupos
para buscarem liberdade”. Entretanto, adverte Bey, “assim que a TAZ é nomeada
(representada, mediada), ela deve desaparecer, ela vai desaparecer,
deixando para trás um invólucro vazio e brotará novamente em outro lugar,
novamente invisível, porque é indefinível pelos termos do Espetáculo”.
Essa
tendência ao agrupamento se verificou no Coletivo Parabelo da Corrente, coletividade
temporária criada entre o Coletivo Parabelo e o Sarau Elo da Corrente.
Esses coletivos que trabalham com performance e literatura, respectivamente, se
permitiram sair do lugar de origem para originar um terceiro, um terreno onde o
corpo erraria a ponto de criar narrativas ambulantes.
Neste
terreno, a cidade é um lugar privilegiado de atuação, o que tem a ver
intimamente com os interesses e trajetórias de cada um. O deslocamento da obra
de arte das instituições especializadas para espaços não-convencionais, bem
como a diluição da fronteira entre arte e vida e a possibilidade de tornar
viável outras formas de ser e estar no mundo aparecem potencializados na
relação com a cidade. Esta pode ser entendida como um espaço social
constantemente disputado por diferentes estruturas de poder, as quais são
atualizadas de acordo com os contratos e modos de vida que ali se estabelecem.
Por
exemplo, em Nossa Senhora da Feira ou Africanizando Márcia X, realizada
na feira de Monte Alegre em Pirituba, pode-se dizer que a ação de caminhar
vestida de santa e se besuntar com leite condensado e pipoca provocou uma
reconfiguração das partilhas do sensível, à medida que desloca a figura da
santa de um contexto judaico-cristão para a feira, lugar estabelecido para
compra e venda de mercadorias. Dessa forma, Nossa Senhora da Feira provoca
dissensos em torno da sacralidade da religião e da própria obra de arte e
convoca o consumidor a participar de um ritual profano, entoando dizeres como
“Santa Maria Mãe de Deus, rogai por nós credores, cobrai-nos mesmo após a
morte, amém”.
A
possibilidade de provocar dissensos, disseminar dissonâncias de ordem
econômica, social, emocional, ideológica, identitária,
sexual, política, estética e racial, entre outras, é
uma característica que Eleonora Fabião atribui ao performer,
designado como complicador cultural. O Coletivo Parabelo vai se
interessar pela fricção do corpo desse complicador cultural com a cidade
através da performance, como em Queixa. Uma mulher vestida de gueixa
oferece melancias em forma de vulva aos homens frequentadores da feira,
evocando reações de espanto, desprezo, comoção e até mesmo narrativas
enunciadas por uma mulher, que explica o trabalho como um ritual em que uma
chinesa é violentada e oferece os frutos de seu ventre aos homens.
Essa
dimensão estética e política que emerge da relação entre corpo, cidade e
performance pode sugerir um corpo-ágora: um corpo que convoca a reunião
dos cidadãos em praça pública para discutir questões prementes no aqui-agora,
turbinando a relação do cidadão com a pólis. Entretanto, o cidadão que o corpo-ágora
solicita é deveras distinto daquele das cidades-estado, pois no entendimento
que propomos, as vozes que enunciam o discurso são as dos praticantes
ordinários da cidade: mulheres, homens, crianças, feirantes, vendedores ambulantes,
pessoas em situação de rua, imigrantes, indígenas, moradores do bairro de
Pirituba. A visibilidade dos conflitos que perpassam o cotidiano, às vezes
abafados pela automatização da vida, ativa o que está embrutecido em nós: a
possibilidade de reconhecer o outro como um interlocutor de nós mesmos. Essa
experiência de alteridade, ao mesmo tempo em que legitima o lugar do outro, o
convida a tomar parte da situação, testando formas possíveis de diálogo, troca
e participação que são realizadas no comum. É neste sensível
(com)partilhado que reside a potência da performance.
